O dia a dia de uma revolução

NOUVELLE VAGUE

Em dois filmes deste ano, Richard Linklater, um dos mais inventivos cineastas estadunidenses, rende homenagem a dois grandes artistas. Em Blue Moon, ainda sem data de estreia por aqui, ele trata do inferno pessoal do compositor Lorenz Hart ao se sentir descartado por seu parceiro Richard Rodgers. Em Nouvelle Vague, oferece um perfil de Jean-Luc Godard durante a produção de Acossado.

Nouvelle Vague reencena de maneira graciosa e sugestiva o momento em que os combativos críticos da Cahiers du Cinéma, os “jovens turcos”, passavam à realização. Em 1959, François Truffaut estreava Os Incompreendidos em Cannes, Agnès Varda tinha feito La Pointe Courte, Claude Chabrol já tinha dois longas no currículo. Godard, tendo assinado apenas curtas-metragens, sentia-se atrasado em relação aos colegas.

Linklater me pareceu adotar dois estilos diferentes na direção de Nouvelle Vague. De certa forma, essa diferença emula a revolução que Acossado provocou no panorama do cinema mainstream: a passagem do filme de produtor para o filme de autor.

Na primeira parte, temos uma linguagem mais ou menos clássica para mostrar as discussões de Godard (Guillaume Marbeck) com o produtor Georges de Beauregard (Bruno Dreyfürst). Hesitante perante o aparente despreparo de Jean-Luc, o produtor pede que ele não faça um filme “obscuro como algumas de suas críticas”.

As conversas de Godard com Jean-Paul Belmondo (Aubry Dullin), a chegada da hollywoodiana Jean Seberg (Zoey Deutch) para o papel da “fatal” Patricia, a convocação do fotógrafo Raoul Coutard, vindo da Guerra da Indochina, e a formação da equipe ocupam esse primeiro capítulo ainda com um formato moderadamente convencional.

A partir dos 38 minutos, quando começam as cenas da filmagem propriamente dita, Linklater passa a um tratamento mais liberto, como se assimilasse um pouco – somente um pouco – das ousadias de Godard. É hora de situar o método revolucionário de Jean-Luc, explanado em diálogos no set: os jump cuts (saltos dentro do plano), o desprezo pela continuidade e pelas regras de eixo da câmera, a valorização do improviso, a ausência de roteiro e a eliminação dos ensaios em troca do frescor da não atuação. Na sala de montagem, sua opção era cortar dentro das cenas, deixando de fora tudo o que não fosse movimento, visual ou verbal.

Godard aparece como era de fato, ou seja, um criador algo arrogante, que filmava seguindo unicamente seu temperamento, razão pela qual deixava em cólicas o produtor e a continuísta. Surfava em frases de efeito, jogos de palavras e citações, ingredientes importantes de sua “Nova Onda”. Acossado, para ele, seria um documentário sobre um ator e uma atriz vivendo uma ficção.

Há quem ache Nouvelle Vague um tanto didático demais e que não vai muito além de um name-dropping reverencial. De fato, Linklater escalou atores e atrizes parecidos com cada uma das figuras icônicas do movimento, que aparecem identificadas como num documentário. Lá estão, além da equipe de Acossado, Jean-Pierre Melville no estúdio (provavelmente de Dois Homens em Manhattan), Robert Bresson filmando uma cena de Pickpocket e Roberto Rossellini fazendo uma preleção sobre o espírito do cinema para os jovens na redação da Cahiers.

 Para mim, o filme valeu como uma evocação visual atraente e uma síntese de como o cinema se renovava naquele momento. Com algumas cenas que permaneceram na lembrança, como a citação avant la lettre de A Doce Vida com Jean Seberg se divertindo numa fonte que não era a de Trevi. Ou Godard e Belmondo combinando o personagem de Michel Poiccard enquanto pulam corda numa academia de boxe. Ou ainda a recriação da filmagem nos Champs Élysées com a câmera e o cinegrafista escondidos num carrinho de correio.

>> Nouvelle Vague está nos cinemas.

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